quarta-feira, 27 de junho de 2012

O que penso do realismo


O que penso do realismo

Há algum tempo, acompanhei o desenvolvimento de um caso bastante intrigante ocorrido numa cidade próxima. Vim a ter conhecimento de uma certa Dona Xanda, proprietária de um pequeno restaurante destinado aos moradores do bairro, mas que vinha experimentando um aumento espantoso de sua freguesia. Todo este alarde devia-se a um suposto tempero secreto, o qual somente a Dona Xanda sabia preparar. O rumor sobre a comida e seu condimento milagroso espalhou-se em grande velocidade, de forma que até mesmo o jornal televisivo local foi cobrir o caso. Após provar da refeição, a reporter enviada corroborou todos os boatos e efusivamente afirmou tratar-se de um gosto muito especial, algo como páprica doce, mas amargo ao mesmo tempo. As opiniões quanto ao sabor do tempero, eram bastante conflitantes, mas todos concordavam no que se tratava da qualidade do gosto – excepcional. Os dias passavam e Dona Xanda teve de contratar ajudantes, pois não dava mais conta de todo o trabalho extra. A boa senhora era pressionada diariamente para revelar seu segredo, ou pelo menos parte dele. De fato, toda aquela atenção não tardaria a causar algum revés, e assim o foi numa manhã de sábado, quando uma senhora, suposta amiga de Dona Xanda, cruzou sorrateiramente o balcão do restaurante com apenas um objetivo em mente: Achar e roubar o tempero secreto. A gatuna improvável sondou a cozinha por alguns minutos, até descobrir um vidro de café instantâneo preenchido com um pó sem cor. Sem ter dúvidas de que se tratava do tal condimento, provavelmente uma mistura de ervas trituradas, pegou o vidro e saiu rápido, sua carreira no crime, entretanto, acabara antes de começar. Foi vista saindo da cozinha, pisando na ponta dos pés de forma caricatural, agarrada ao pote de vidro. Meu tempero! Gritou Dona Xanda. Nem precisava, a larápia já tinha sido detida pelos frequentadores. O jornal exibia a manchete: “ Dona Xanda e seus ingredientes mágicos sofrem tentativa de furto “ vinculando a foto do pote e seu conteúdo misterioso. Agora todos sabiam sua consistência. Era seco, em forma de pó, poucamente pigmentado. O bar, como era de se esperar, decolou e não havia pessoa que já não tivesse escutado sobre sua comida incrível. Um mês inteiro passou-se e na semana que havia programado de ir experimentar a saborosa refeição o jornal estampa outra bomba: “ Dona Xanda sofre de severa depressão e não abre seu badalado restaurante nessa segunda feira”. A notícia intrigou-me e de certa forma soube naquele momento que alguma coisa estava na iminência de acontecer. Três dias depois parei no posto de gasolina para abastecer e ouvi dois frentistas falando algo sobre o Dona Xanda, riam e pareciam debochar de algo. Senti um frio no estômago, entrei no carro e voei para casa, liguei o computador e procurei sobre o assunto. Num site de notícias achei o que procurava.

“O segredo de Dona Xanda
Dona Xanda, desesperada devido as baixas vendas em seu restaurante, não sabia mais a quem apelar, estando sem dinheiro para investir e numa localização pouco privilegiada. Certa noite, ao navegar pela internet – havia aprendido com seu neto há 3 meses – deparou-se com um ótimo site de culinária, cadastrou seu nome e escreveu opiniões na área destinada. Algum tempo depois recebeu um email de um suposto vendedor de temperos exóticos e estrangeiros. Dona Xanda conversou muito com o homem, que garantiu o sabor inigualável, mas que mostrava-se apenas quando em contato com a comida. Dona Xanda que não era boba suspeitou desta característica tão incomum, mas seu neto já havia contado sobre as maravilhas da química e mesmo na televisão ela via toda a hora como a ciência podia ser incrível e criar coisas que ela não podia compreender. O preço? Apenas 30 reais, depositados em uma conta. Recebeu quatro vidros preenchidos por um pó misterioso, que se provado não tinha gosto de nada, ou quase nada -parecia um pouco com terra. Para tirar a prova, Dona Xanda convidou a família para um almoço e usou uma boa quantidade do produto. No fim do almoço revelou que acrescentara um toque especial àquela refeição. Ao ouvir ela falar em pote de café e pó esbranquiçado seu filho levantou-se rápido, correu a cozinha e pediu para ver. Dona Xanda assustada sem entender nada alcançou-lhe o produto do qual seu filho deu uma boa provada, esfregando o conteúdo nas gengivas.” Não, não há nenhum problema aqui mãe, parece ser algum tempero esquisito mesmo” e saiu da cozinha com um sorriso amarelo. No fim todos concordaram que pensando a respeito, a comida estava melhor e que inclusive a neta, sempre tão recatada, acabou servindo-se duas vezes. O que seguiu-se fora o crescimento do mito e da clientela e ,assim, por um mês inteiro, Dona Xanda serviu incontáveis clientes satisfeitos em provar de seus quitutes mágicos. Com o escassamento do tempero, Dona Xanda viu-se incapaz de providencias mais, o vendedor não respondia seus emails, e não tinha ideia de como prepará-lo. Entrou em depressão, seus clientes, o que pensariam dela? Decidiu que o correto a fazer seria revelar toda a verdade. Assim o fez, na quarta-feira ligou para o jornal local e contou toda a história. Em vinte minutos dois homens recolhiam a sobra de um dos vidros para testes. No fim da tarde ficou-se provado que o conteúdo dos vidros tratava-se de uma mistura de cinzas humanas e animais. Alguém, por piada, ou vigarice, de alguma forma apropiara-se do despejo de algum crematório e vendera seu singular produto a uma senhora disposta a usá-lo em comidas. “

No fim por não apresentar nenhum risco e ser totalmente estéril as cinzas não foram consideradas um perigo a saúde e Dona Xanda não foi processada. Restou-lhe continuar seu restaurante, agora tolido do público anterior. Confesso que ri por um bom tempo de tudo isso. A diversão, porém, logo transformou-se em uma pequena irritação, a irritação; em raiva, a raiva; em um ódio ardido que consumia minhas noites. Por que a velha não ficou de boca fechada? Quero dizer, ela poderia cuspir na comida e todos continuariam a gostar. Se ela tentasse, por apenas um dia, servir seus pratos sem os restos de gente, iria perceber tudo. Que tipo de moral incrivelmente esmagadora é essa? Penso mais como uma crença, uma religião desatinada, inquestionada, uma ode ao real. Por que razão não ocoreu à Dona Xanda simplesmente mentir. Sua comida de fato era boa, sua sorte por outro lado, uma porcaria, sem seu tempero mágico nunca iria livrar-se do buraco em que se encontrava. Não faz sentido para mim o motivo de alguém livrar-se disso em função do real, o real fetichizado, o real irreal. O que ataca minha mente e provoca contrações de desgosto é pensar que o sabor mágico, esse sim era verdadeiro. A comida temperada com aquela substância misteriosa foi por aquele mês inteiro, verdadeiramente mais saborosa. Ao agarrar o mito e trazê-lo diretamente para o âmago da ilusão, para a construção mais falsa de todas, Dona Xanda destruiu o que realmente importava, o sentimento. Transfourmou algo tão sublime e incrível em cinzas humanas, essas sim, falsas, desimportantes, mentirosas. Posso garantir que jamais aquelas pessoas comerão um prato com o mesmo sabor , o sabor do idealismo, o sabor real e verdadeiro de um significado. Dona Xanda eu a odeio por isso, odeio sua veneração por uma mentira, odeio como você mata as coisas. Engessando seus significados, atrelando tudo a um âmbito material composto por nada mais do que distorções e fantasias. Sinto suas garras pegajosas todo dia ao acordar, ao ser lançado contra minha vontade em suas confissões assassinas, suas explicações desimportantes. O Jornal exibiu triunfante a história toda. Não havia dúvidas, mais um ponto para a verdade, não existem temperos mágicos, não existem sequer sabores, a velha apenas queria enganar uns trouxas, viva ao cotidiano, viva ao comum, baixem suas cabeças e agarrem seus objetos, sabores mágicos apenas em restaurantes caros, o que vocês estão pensando?

Eu digo foda-se Dona Xanda. Ao fechar os olhos imagino-me em um grande parque, a grama que não é grama, as luzes que não são luzes. Posso apenas sentir, ignorar sua existência e conservar seu significado. Mais pessoas juntam-se à grande inauguração. Tudo é tão solto, tão livre. O grande pórtico de entrada canta uma música alegre, em minha mente as notas formam letras, as letras palavras: “Bem-vindo ao surrealismo”, Deus estou em casa.

segunda-feira, 25 de junho de 2012


“Pergunta sempre inquietante e desgostosa; existe uma única forma de morrer, envolvendo unicamente o desligamento do corpo material ou é possível sumir-se em um nível além do cotidiano? Se fosse possível perder-se do mundo, perder-se das percepções, seria essa uma forma de morte? Algo como um desaparecer mental. Mais, se perco o toque do mundo perco-o também em minha consciência, e o que resta, a não ser a não existência?”

Caminho pela região central, ainda meio zonzo e coma  cabeça leve. São cinco da tarde e o anoitecer prematuro do inverno já cobre de sombras esta parte da cidade. Alguns já fecham suas lojas, baixam seus pesados portões de ferro engraxado, olham desconfiados por sobre os ombros, olhos injetados com profundas olheiras. Afasto-me mais para o centro da rua, não quero ser alvo daqueles olhares. Passo por uma infinidade de pessoas, algumas no sentido contrário, outras mais rápidas ou mais lentas, cabeças baixas. O clássico mar de rostos desconhecidos, todos partilhando da mesma expressão desoladora, irreal. Sinto que começa a acontecer novamente, o mundo descolando-se. Apresso o passo e atravesso a praça recém reformada, as tristes estátuas brancas observam caladas. Mendigos preparam seus papelões e suas bebidas. Duas pessoas passam correndo, olho instintivamente para trás. Nada é claro. Sigo tentando manter-me íntegro, mas a sensação persiste, o mundo perde a sintonia por duas vezes. Tenho um pressentimento, não desses de desfortuna, mas de excitação. Mais pessoas correndo. Vou na mesma direção, o motivo de estar ali a princípio torna-se desimportante. Em alguns metros de corrida já esqueço totalmente o que iria fazer. Não dou importância, nunca há um motivo na verdade, nunca há nada real, no fim do dia restaria apenas juntar-me a massa de mortos-vivos.

Vejo ao longe uma pequena multidão. Corro mais rápido, o coração sedentário pulsando vividamente despejando ácido de bateria nos músculos, o ossos rangem e estalam, estavam enferrujados, soldados na mesma posição. Ao chegar no local, já me sinto mais real e a ambivalência diminuira consideravelmente. Algumas dezenas de pessoas colocam-se ao redor de uma alta torre erguida de frente para o rio. No alto da torre há um homem, parece nervoso, balança os braços em movimentos bruscos. Sinto meus pulmões em chamas e preciso de alguns minutos para me recompor. Quando consigo respirar novamente pergunto às pessoas sobre o homem. Ninguém sabe ao certo, todos chegaram e o ele já estava em cima da torre, o que parece, entretanto, é que demorou muito a notar a presença das pessoas, so vindo a ter esta ciência quando o falatório tornou-se audível para ele. A partir deste momento pareceu muito nervoso e pelo que falaram insinuou descer duas vezes, desistindo logo em seguida. Permaneço olhando para o alto, a torre rasgando o céu vermelho do fim da tarde. As roupas do homem voam no vento enquanto ele permanece sentado com as mãos no rosto. Passam-se mais de 10 minutos sem nenhuma movimentação. As pessoas ficam inquietas. Uma briga parece começar no meio da confusão e começa um empurra empurra. Alguns gritam, parecem irritados. Tento fugir para um lugar mais calmo, mas descubro-me preso por uma massa compacta de pessoas que chegam para juntar-se ao espetáculo. Ouço o som de sirenes ao longe, o trânsito, porém, não permite a passagem de nenhum veículo. O homem levanta-se, olha para baixo, as pessoas começam a gritar, não entendo o que dizem a princípio. Um gordo ao meu lado exalta-se e passa a insultar o homem da torre, grita para que pule. Fico assustado e no momento seguinte a irrealidade ataca novamente. Dessa vez com força total, poderia desaparecer a qualquer momento, sinto estar perdendo o mundo, ficando translúcido. Algo como uma batalha de sintonia ocorre em minha mente, tento sentir a vibração correta, sentir o modo de existir inteiro novamente. Nada. Não há nada. Inesperadamente dou-me conta que as pessoas gritão muito. Xingam, cospem, blasfemam e apontam. Pule! Pule! Fazem gestos com os braços, convidam o homem da torre a uma descida rápida. Ele anda em círculos no pequeno espaço, parece chorar. Olho minhas mãos e posso ver o chão através delas, óh não, nunca pensei que passaria para este lado, nunca havia sido tão forte e eu estava no pior lugar possível. E se me vissem, se me vissem sumindo, desaparecendo, o que pensariam? Caminho sem rumo entre os animais. A multidão enfurece-se. Pule! Pule para mim! Não consigo mais ficar de pé. Minhas pernas também perdem sua consistência, quando atingir meu cérebro será o fim. Sem o contato com o mundo o que vai sobrar para mim? Como pode ser possível morrer dessa forma?

“Pule para mim! Me redima! “A transparência sobe por meu peito. Não há mais tempo, eu olho para cima. O homem parece gritar em desespero. “Pule! Pule ou o trucidaremos!” Eles respondem. Imerso em meu próprio desespero, a irrealidade alcançando as bordas da minha mente, desligando os circuitos, fechandos os caminhos. Levanto sem pensar, sinto como se atravessasse as pessoas, alcanço rápido a torre, em um momento já estou no topo, não ouço nada, não vejo nada, o mundo é quase uma sala escura. Concentro toda a vontade em minha próxima ação. Quando o homem se vira e me vê, já estou real novamente. Despertado de um sonho de uma vida inteira. “Eu só queria apreciar a vista “ Diz o homem aos prantos. Em meus olhos injetados com profundas olheiras ele vê seu futuro e desvia o olhar, dá meia volta e um passo para frente. Eu chuto-o nas costas, eu o redimo, livro-o desta vergonha. O homem cai na noite escura direto no mar de pessoas, ele será despedaçado isso é verdade. Chego perto da borda, o ar frio machuca meu rosto. Pule! Eles gritam. Livre-se dessa vergonha!

quarta-feira, 20 de junho de 2012

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Existem naturezas puramente contemplativas e totalmente impróprias para a ação que, no entando, sob uma impulsão misteriosa e desconhecida, agem às vezes com uma rapidez de que elas próprias se julgariam incapazes ( Baudelaire “ o mau vidraceiro”)

Se o objeto ou fenômeno em perspectiva no conto de Baudelaire tem estado em estudo por alguma outra disciplina que não a arte, isto é algo que não posso esclarecer. Digo com objeto; a verdade transmitida, e não seu método ou mesmo sua simbologia. A verdade, ou acesso, é algo que transpõe o processo de comunicá-la. Faço essa digressão com o propósito único de tornar transparente, nesse caso, o meu fenômeno em perspectiva. Certamente existem incontáveis estudos de qualidade sobre o método do autor, e mais ainda, sobre sua simbologia. Meu centro de interesse é justamente o objeto comunicado. Esse novo passatempo psíquico  deve-se inteiramente à acontecimentos recentes... 3 dias para ser exato. Hesito instintivamente em pensar objetivamente no tempo passado até este momento, o tempo que sucedeu-se aos acontecimentos daquela manhã não se mantém estável, fragmentos de momentos alongam-se e horas inteiras perdem-se num oceano de desolação. Tenho mantido, a grandes custos, minha mente incólume dos assédios da memória, que teima fazer surgir imagens e sentimentos em minha fragilizada percepção. Compreendo, contudo, que não tenho escolha a não ser permitir a visitação ao espetáculo grotesco a que fui submetido. Se não o fizer e minhas energias acabarem, a memória chegará com tamanho descontrole e ira que não poderei fazer nada a não ser assistir a insanidade corrompendo cada partícula de minha presença.Ter meu ser pervertido em tal nível existencial é algo que não poderia permitir. Existir é a última fronteira do ser, um processo tão complexo que beira o início em seu sentido essêncial. Enfrentarei o temor para não permitir-me macular a única verdade que me torna diferente de qualquer outra coisa.

Segunda feira, 9h. É uma manhã nublada que aponta um clima gelado o dia inteiro. Acordei de um sonho bizarro com raizes de árvores e bancos de praça. Toda vez que encostava a mão no banco ou os pés nas raízes era acometido por um ataque severo de náusea no corpo inteiro. Um tipo bastante atípico de sensação para ser sincero, e confesso que, se é que isso é possível, o sonho de fato ensinou-me algo. Quero dizer, antes dele jamais havia tido sensação tão pitoresca e sensivelmente perversa, agora se esforçar minha sintonia posso quase trazê-la para a realidade. Esta constatação aparentemente trivial levou-me a refletir mais profundamente sobre a natureza desse estado de consciência e sua capacidade de transmitir algo novo, ou pelo menos unir sensações produzindo algo diferente. Se do mundo real é que tiramos as sensações e com elas construímos nosso entendimento, como poderia ser possível construir algo a partir de um mundo, por assim dizer: não-real.  Por deus, uma manhã de segunda-feira e eu já sentia minha mente exaurida por esta obsessão. É claro, não faria nada naquele dia, tal como nos outros. Qual o propósito de um homem nos dias de hoje mesmo? Não posso responder, mas não serei outro escravo, ah isso é verdade, antes um aristocrata decadente. Inquieto com as novas indagações procurei por tentativas de inspiração. Abri a grande janela que dava para à avenida 7 andares a baixo. Os automóveis já aglomeravam-se em uma longa fila barulhenta. A partir dessa hora o sono é impossível para qualquer ser humano normal. Os grandes dinossauros a diesel espalham sua vibração por toda a estrutura do prédio em uma frequência particularmente desagradável. Algumas vezes ela é bastante para mover, vagarosamente, algum objeto em cima de uma superfície lisa, fazendo-o dar saltinhos e estalos que assemelham-se a um zumbido distante de algum inseto. A fumaça oleosa é outro fator, embora o grosso da jatância negra do diesel acabe acumulando-se na altura do quarto andar. Já ouvi falar que este prédio fora habitado por alguns poetas e bohemios famosos. Poesia é, agora, a última característica que se poderia atribuir a este lugar, não que o resto da cidade seja diferente, não que qualquer cidade seja diferente.

Ainda incapaz de dar continuidade ao pensamento procurava por inspirações. A cannabis não seria apropriada para esta tarefa em específico e eu a deixaria de lado, por algumas horas. Sentia que faltava-me sustentação total para concluir meu entendimento. Se eu pudesse mergulhar em uma piscina lisérgica poderia acessar essa incompletude. Ou talvez algum cogumelo, ou poderia lamber um sapo mágico. A verdade é que acabei vagando pelo apartamento, ia da janela da sala, por detrás do sofá, cruzava a mesa pela direita e acabava de frente a geladeira na cozinha, onde eu dava meia volta e fazia o mesmo caminho. Inconscientemente após horas neste processo desatinado consegui manter um padrão quase perfeito em minha caminhada, dando o mesmo número de passos a cada volta. O rádio, muito potente, ecoava um som frenético e desatinado, ainda assim dotado de uma melódia e composição incríveis. Fechei os olhos mantendo sempre o mesmo caminho e me descobri capaz de seguir o padrão sem precisar da visão. O movimento contínuo, a música hipnótica, a ausência de visão e o acúmulo dos constantes flash-backs sempre combatidos, acabaram gerando um estado de quase transe. Lançado em uma realidade insensata tornava-me progressivamente mais incapaz de destinguir a ordem das coisas. Veios de luz colorida atacavam meus olhos mesmo cerrados ao máximo e um universo abria-se no palco de minhas pálpebras. Abrir os olhos apenas tornava a superposição intolerável para o estômago. Não há outra maneira de explicar tal sensação de distorção espacial. Estar vivendo perspectivas diferentes superpostas é como dividir o cérebro em dois, como se pudesse olhar 90 graus para cima com um olho e 90 graus para baixo com outro. O equilíbrio no meio dessas duas perspectivas não entende onde afinal está o corpo e só resta a vertigem e o enjoo. Permaneci assim, de olhos fechados, que tão logo seriam um detalhe deixado para trás naquele mundo de efêmeros e instantes. A quantidade de eventos diferentes acontecendo aumentava a cada momento, os veios luminosos davam lugar a esteiras quadriculadas de luzes tão intensas que pareciam anular tudo ao seu redor. Fractais coloridos desdobravam-se preenchendo totalmente o campos de visão mas nunca parando de gerar mais e mais. A sensação de infinitude agredindo violentamente minha mente, é uma emoção que não deveria ser sentida, sentir sua mente travando como um computador, presa num círculo infinito de acontecimentos, incapaz de lidar com a compreensão falha de espaço. Tão logo algo surgia, já também esmaecia para dar lugar a novas construções. Quando finalmente fui capaz de libertar-me dos desdobramentos eternos, lembrei de minha pergunta inicial, e vi como ela havia sido expandida, transbordada para este momento. Se antes intrigara-me o aprendizado em um sonho, agora me era apresentado um verdadeiro mundo de fenômenos novos, uma construção de uma compreensão de todos. Algo como olhar as engrenagens da máquina, não a máquina de verdade, a máquina pensante, a subjetiva, a presença. Sentia-me cada vez mais imerso em um sonho frenético e assustadoramente real. A psicodelia habitual transformava-se em um delírio complexo e profundo. A sensação de ser triturado entre dois mundos dera lugar a uma unidade e uma consciência mais limpa situada numa realidade ilusória. O mais importante, contudo, fora a capacidade de ação. Antes era apenas um espectador, agora era capaz de fazer nesse mundo, de fato existia nele. Nas paredes vacilantes da sala via desenhos incompreensíveis e fragmentos de palavras enchiam o ambiente num caos desatinado. Conseguia agarrá-los, os fragmentos, e extrair-lhes os significados. Segurava, em minhas mãos, em minha posse, as informações, podia triturá-las, chegar perto de sua unidade. Por fim a sensação de prazer estético. Não acredito ser capaz de explicar este sentimento tão subliminar. Algo como um prazer profundo, imanente, inacessável em termos lógicos e por isso mesmo, por que não? Divino. A beleza do próprio sentido antes mesmo de ser beleza, o estético puramente em significado e não em entes. Corria pelo apartamento em busca de mais dessa substância celestial. Em oposição ao sonho, as mãos agora tocavam as verdades e não as coisas. O sentimento não mais de náusea, mas sim de esplendor. Não tinha mais controle nenhum sobre o que fazia. Abria sacos de comida e jogava o conteúdo no ar, via a movimentação dos gãos, da nuvem de farinha, a garrafa de vidro espatifando-se na parede e a luz fluorescente explodindo ao ser acertada por uma garrafa. Em tudo havia aquela apreciação, não havia mais limites, a vida destinava-se apenas a produzir beleza, queria estar nesse estado para sempre, queria gerar os eventos mais incríveis. Desatinado e cego pela loucura agarrei um pesado espelho da parede da sala. Segui com ele até a janela, os olhos faíscando, sentia a saliva escorrendo pelos lados da boca e arfava como um animal ensandecido. Agarrava forte o vidro querendo partí-lo em minhas mãos, decepando meus próprios dedos e zombar da beleza transviada que existiria nisso. Abri a janela e gritando lancei aquele pedaço mágico de cristal. O que seguiu-se fora uma fusão entre o desespero tétrico e a felicidade inalcançável. O espelho iniciou sua queda, refletindo as nuvens cinzentas em sua superfície, era como se um pedaço do próprio céu tivesse se desprendido e estivesse agora em queda livre em direção aos mortais que nada tem com isso. Nada além de lindo, metro a metro, cada instante mais perto de despejar sua cólera em quem estiver embaixo. Aguardei ansioso o impacto final, antevi a explosão, só mais um segundo e presenciaria o maior espetáculo da minha vida. Parecia que ia acertar um carro, aprumei os calcanhares. O carro moveu-se, o vidro errou o veículo por alguns centímetros, caiu direto no asfalto, um impacto seco que produziu um som melancólico e irritante. Algumas pessoas olharam para cima, recolhi-me rápido e fechei as cortinas. A decepção fora inegável. Havia eu saído de meu transe alucinógeno um momento antes do vidro acertar o chão ou de fato nada de belo existia naquilo? O som de sirene colocou-me de saída, ainda tinha que bolar alguma boa história se me pegassem. Cheguei à calçada e um algomerado se formara na rua, aproximei-me e no alsfato negro jazia os pedaços arruinados do espelho. Em meio ao burburinho ouvi alguém dizendo que era lindo o modo como os pedacinhos refletiam a paisagem, dei um imenso sorriso.
E
”E embrigado por minha loucura, girtei-lhe furiosamente:

A vida bela de se ver! A vida bela de ser ver.!

Essas brincadeiras nervosas não são isentas de perigo, e pode-se, às vezes, pagar caro por elas. Mas o que importa a eternidade da danação a quem encontrou num segundo o infinito da fruição( Baudelaire “ o mau vidraceiro”)

terça-feira, 19 de junho de 2012


A prisão da alma

Não espero reconhecimentos por tão insensata, porém tão familiar história que escrevo a partir desta prisão em que me coloquei. Rabisco em um débil bloco de notas usando nada mais que um fragmento de carvão que porventura se colocou ao meu alcance. Não possuo um fim imediato, escrevo tais palavras pois é só o que me resta nesses dias infindáveis. Tenho como companhia uma vaga esperança de poder libertar-me deste claustro auto-imputado, do contrário serenamente aceitaria a insanidade corromper-me por completo até o momento final.

Tudo começou quando tive em minhas posses um grande bloco de granito, como e por que tão extravagante peça se colocou em minha vida é uma memória que já abandonei há muito tempo, creio que algo realmente importante e singular não necessite de um motivo, mesmo que haja um a princípio, claro. Veja, a valia está na própria ideia de ser e não no porquê de ser, pelo menos assim julga minha razão ou minhas paixões.

Estagnado em minha sórdida sala de estar, aquele tosco matacão de pedra permaneceu por um longo tempo. Sempre que olhava-o era assaltado pelo mesmo pensamento: de que serve este pedaço de pedra se não para virar uma escultura? Foi assim pensando que em pouco tempo coloquei-me a talhá-lo, o processo em si nada tem de extraordinário, e se me permitem admitir, é mais uma lembrança que mergulhou em um poço fundo demais para ser recuperada. Já a memória seguinte me é viva como se estivesse ocorrendo agora, ainda que como num sonho, encoberta por uma bruma espectral e sempre inatingível, oh sim! esse é o pior acreditem, posso vê-la e posso imaginar a estar sentindo, mas nunca revivê-la de fato. Quisera eu tal lembrança ter se afundado não em um poço, mas em um oceano de águas negras e inalcançáveis, talvez se assim fosse não estaria hoje nessa condição desprezível, nem teria por tanto tempo vivido nas costas de uma procura insensata.

Retirei daquela pedra a melhor coisa que já me acontecera, e por que não? A própria felicidade se é que está existe de fato. Contemplar meu achado era a atividade diária, retornar após um longo dia e poder encontrar tão maravilhosa jóia em meu infame salão sextavado dava um sentido a minha existência. Nesse ponto minhas palavras devem ser aceitas sem desconfiança, ninguém jamais viu aquela ideia que colocava-se em meu salão, acho que nem poderiam. Apenas eu conseguia apreciar com total exaltação as afeições provocadas pela interação que se formara e me é difícil definir precisamente qual meu estado, assim como sempre é difícil para alguém entender as paixões da alma. Hesito em dar o próximo passo neste relato, tal é o tormento que toma conta de meu espírito, tamanha desventura insuportável causa-me um mal físico até mesmo agora e peço desculpas se me tornar lúgubre a partir deste momento, mas angústia indefinível como essa não pode ser contida.

Recordo o trágico dia em que adentrei em meu salão, em uma noite de outono, atroz foi meu desespero ao perceber que o motivo de minha ventura estava mudado, rachaduras e trincas espalhavam-se por toda sua superfície. Incrédulo a princípio não entendia como não as tinha visto antes, que demônio pavoroso havia pousado sobre minha mente e me impedido de entender tal realidade? Logo, porém, meu ardil já estava em ação, e neste preciso momento, acredito, foi quando coloquei-me neste vórtice irrecuperável de insensatez. Minha trama era simples em sua prática, jamais imaginei, entretanto, que suas conseqüências seriam tão complexamente medonhas. Iria restaurar a superfície danificada! Isso demandou-me dias de estudo, compreendam, não é simples trabalhar com o material ao qual me dispunha, seu conteúdo estritamente metafísico é pouco entendido a despeito de inúmeras teorias, todas incompletas como fui posteriormente descobrir. Eventualmente logrei um resultado satisfatório, agora posso entender com mais clareza a evidente distinção entre o antes e o depois, mas na ocasião meu júbilo era tanto que preferi enganar-me e cegar a percepção deste fato perverso.

Acreditando ter novamente a situação como no princípio continuei feliz em minha existência, ignorando aquele ruído irritante que persistia em agulhar o fundo da minha mente, aumentando com o passar dos dias até um ponto em que não podia mais ignorá-lo, por maior que fosse minha vontade. Junto deste entendimento tive novamente uma revelação;  tudo havia mudado novamente, desta vez não apenas rachaduras e trincas, o estrago era terrível, o resultado disforme ameaçava corroer completamente minha sanidade e minha única ação foi cair de joelhos a contemplar a infernal desolação que a visão provocava.

 Meu temperamento e caráter sofreram uma alteração radical, a tristeza de minha alma aumentou até tornar-se em ódio a tudo e todos. Procurei culpados por aquela atrocidade, culpei e amaldiçoei deuses e mortais, como eles podiam ter feito isso, como alguém pode ter tido a perversidade de destruir minha felicidade, há de ser um psicopata alucinado! Deixe-me levar por superstições doentias, acreditei ser vítima de pragas arcanas esquecidas a milênios e por fim voltei a ira contra meu próprio ser.

Abandonando minha vida habitual, cai na loucura do vinho e da noite, mas nada trazia conforto a minha dor. Um dia ao chegar em passos trôpegos ao meu salão, a fúria dos demônios apoderou-se de mim, não me reconhecia. Deixando-me levar por esta possessão desatinada me pus a tentar refazer o estrago, passei a noite alternando momentos de alucinação em que caia as gargalhadas e de desespero tétrico em que sentia minha mente sendo rasgada. Em meio a esse frenesi dei continuidade ao furor restaurador, ignorando o fato evidente de que aquilo estava agora muito longe de ser como fora anteriormente. Em minha febre doentia imaginava ver a forma se recompondo, peça a peça, a superfície perfeita nos seus mínimos detalhes, a felicidade enchendo novamente minha alma, isso até desfalecer exausto no chão frio do meu salão.

Ao acordar no dia seguinte e me deparar com aquela monstruosidade que havia criado novamente surgiu em mim a cólera da noite anterior, aquele arremedo que estava a encarar-me não merecia nem uma lembrança em minha vida, levei mão a uma marreta e loucamente comecei a destruí-lo, queria acabar rápido, evitando, assim, que aquela coisa hedionda ficasse para sempre queimada em minha memória e tomasse o lugar do que antes fora tão fabuloso.

Em minha sanha destruidora, cego pela raiva e pelo medo, acabei acertando um golpe no lugar errado, e tudo veio a baixo esmagando-me contra o chão e obrigando-me a encarar aquela realidade medonha sem chance de fuga.

Acabei preso e nesta situação estou agora, escrevendo em um bloco de notas com um pedaço tosco de carvão, aguardando que a coisa se desintegre por completo e liberte-me desse cárcere que eu ajudei a criar.


Micael Salton

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Desinformação e Ortodoxia

Recentemente circulou em redes sociais uma montagem no mínimo ignorante sobre o assunto drogas, em especial à maconha e seus usuários, certamente fruto da crescente atenção midiática que a cannabis tem experimentado.
Na contramão do mundo inteiro a "iluminada" classe média Brasileira expõe sua mentalidade conservadora. Filhos da mesma classe média apoiadora da ditadura, mais de 4 décadas de opressão não foram o bastante para exorcizar a ortodoxia perversa. Enquanto o agora chamado "mercado verde" rende milhões para empresários semi-legais a sociedade continua a promover uma guerra perdida ao custo de bilhões. O que existe é uma limpeza social travestida de combate as drogas, essa política retrógrada serve a interesses que nada tem a ver com lei ou moral.Mesmo na película a cena mostrada na montagem -que representa a catarse de uma sociedade aprisionada pela violência em busca de um bode expiatório exterior- o personagem Cap. Nascimento "apenas" assusta o "playboy" ou estudante ( consumidor final ). O filme explicita cruamente quem é o verdadeiro afetado pela luta do politicamente correto. O preto pobre sim acaba no "saco", primeiramente em forma de tortura e no final através da execução. Ainda assim as cenas de impacto real sobre a audiência são justamente as de agressão ao consumidor final e do assassinato da estudante e do político pelos traficantes; um evidente paradoxo, uma vez que a platéia é induzida a dirigir sua opinião pró-violência da polícia contra o consumidor e em seguida sofre o choque contrário do assassinato destes pelo crime. Essa contradição redireciona a raiva de volta ao traficante, que todos já sabem; está condenado. A intolerância à morte do rico contrasta com a aceitação natural à morte do pobre, o que demonstra que só existe ligação moral com aquele restando ao pobre no mínimo a condição de dispensável.
A classe média branca conservadora nunca mudou em 500 anos, o pensamento aristocrático escravagista continua ai; foi-se o capitão-do-mato, chegou o bope.